A lembrança do cheiro dele invadiu a casa.
Apertou o coração.
Fechei os livros.
Quando vivemos permanentemente num suposto tempo futuro aguentamos os maiores desaforos do tempo presente. Tudo em nome da promessa de “casinha feliz para sempre num futuro não muito distante”. Infelizmente, os casais que assim pensaram – salvo raras exceções – não contaram com a astúcia e a flexibilidade dessa variável chamada tempo e, é verdade, foram muito mais corajosos (ou seria, otimistas?) do que manda o manual pelo qual parece se guiar a vida real.
Não é um manual muito inteligente esse que rege as coisas do coração. É, antes, um amontoado de clichês, uma espécie de sabedoria oral, repetitiva e certeira, que é transmitida pelas nossas avós às nossas mães e que nós, na típica ousadia daqueles para quem o presente parece ser um futuro permanente, ousamos desafiar. “O amor não tolera a distância”, diz uma dessas regras de ouro. A verdade contida nesse enunciado está no fato de que toda ausência é atrevida em sua coragem de subsistir sem o outro, na sua empáfia de chope sozinho em mesa de bar. A distância é uma senhora mentirosa, ela zomba de nós acenando com tudo e não nos dando nada do que prometeu. E a distância não é apenas geográfica, ela é também representada pelos planos de vida que tomaram direções opostas.
Vi casais maravilhosos se separarem pela simples não observância dessa sabedoria popular: para eles, não deveria existir um futuro que não o agora vivido intensamente. Casais que se separam para construir um futuro-mais-que-perfeito normalmente naufragam antes da chegada ao indefinível porto seguro. E quando, por acaso, lá chegam, veem que é apenas uma escala antes da próxima viagem. E o motivo é muito simples: o tempo porvir é uma mera abstração, que não podemos balancear tal e qual um orçamento doméstico. Ele será o que será.
O futuro, nessa perspectiva, passa a ser quase um filho pra gente. Acalentamos ele junto ao peito, nutrimos e esperamos que ele cresça para nos resguardar mais adiante. Ficamos tão desapontados quando ele nos joga no asilo dos relacionamentos fracassados.
Há casais que não se amam mais e amargam um vida inteira juntos esperando o futuro de uma velhice sem emoções. Para eles, o vale-seguro que está em jogo é a garantia de que alguém há de querê-los quando nenhuma outra explicação racional (e material) assim justificar. Quando uma das partes quebra o contrato tácito é rotulado como “ingrato”. Devíamos escrever esta cláusula logo de uma vez.
Há casais que se amam muito, mas topam a separação – momentânea – para garantir a mesma fantasia com base no futuro, só que com hipotético final feliz. O futuro passa a ser uma terceira pessoa entre o casal. Personagem que, diga-se de passagem, não existia quando o casal era puro desejo adolescente de apenas “querer respirar o mesmo ar que o outro”. A ansiedade pelo futuro chega com o casamento, os filhos, a responsabilidade, a obrigação de apostar no que não é efêmero. Como se efêmeros não fôssemos todos nós, por definição. Eu vi o desamparo no olhar desses casais, reféns de sua própria decisão. Ao apostar no futuro, deixaram de jogar seus dados no presente. Trágica e fatalistamente perderam, justamente, o futuro, essa coisa que pode existir ou não.
Disponível em: http://jc3.uol.com.br/jornal/2009/11/08/col_35.php
Acesso em: 25/11/2009, às 23h31
Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E, sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu.
Caio Fernando Abreu
"As coisas do íntimo, da gente, não devem ser violadas. Você violou o que eu tinha de mais meu, mais livre, você cassou a minha solitária liberdade." Gilvan Lemos, em O anjo do quarto dia.
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